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RESENHA


Carmen Migueles. São Leopoldo – RS: Editora Nova Harmonia, 2003, p. 156.

Se existir um livro sobre metodologia científica sobre o qual não se pode dizer que é simplesmente mais uma obra no mercado, esta obra é: “Pesquisa: por que os administradores precisam entender disto?”, objeto desta resenha. Carmen Migueles consegue fazer um livro que trata dos principais problemas que os estudantes encontram ao escreverem seu primeiro trabalho científico. Não repete conceitos nem regras de estruturas muito bem explorados em centenas de manuais outros existentes no mercado, como Migueles mesma acentua. Seu livro não gira em torno de definições sobre o conceito de ciência, sobre enfoques  epistemológicos, amostragem ou estratégias de validação de dados. Também não se deixa levar pela chatice das normas relativas ao formato dos trabalhos: cinco centímetros para baixo ou para cima, espaços simples ou duplos, letras maiúsculas ou minúsculas nas citações, e coisas deste estilo.

A proposta é falar “através de exemplos e metáforas, para facilitar o entendimento e evitar este percurso” (p. 15) A primeira discordância vem da advertência inicial da autora de que a estratégia implica um grande risco de banalização da pesquisa e do entendimento da natureza científica da pesquisa. Não foi este o resultado obtido por algumas dezenas de graduandos concludentes na elaboração de seus trabalhos de conclusão de curso. O efeito foi exatamente o contrário, com os alunos se conscientizando da importância da pesquisa em seus trabalhos.

O livro se desenrola através de pequenos capítulos, que representam descrições sobre situações possíveis por que passa a maioria das pessoas que precisam fazer suas monografias, quer sejam dissertações de mestrado, ou trabalhos de conclusão de curso. Após uma leve introdução, as primeiras laudas levam ao assunto principal do livro: por que um administrador precisa  entender de pesquisas? Embora a resposta a esta questão não esteja explícita nestas primeiras páginas, o livro já atesta sua  característica básica: o assunto é muito importante, mas o administrador não tem tempo para cobrir toda a literatura disponível sobre metodologia científica. Ele precisa de um atalho em forma de exemplos e metáforas para cobrir este árduo caminho. Isto o  livro faz muito bem através dos capítulos que se seguem.
Por onde começar? Claro, conhecendo bem os autores que fazem a diferença. O negócio não é ler muito, mas ler com método e objetivo; Importante a chamada para Paulo Freire (p. 24) “ler .. é estudar o estudo de quem, estudando, escreveu”. Ler, então, é uma chamada para pensar nos problemas de quem escreveu e na realidade que a pessoa vai estudar. A utilização do assunto lido dependerá sempre da pessoa que está procurando resolver um problema, ou analisar dada situação. Esta perspectiva jamais deve ser esquecida.
O livro continua com mais alguns trechos instigantes: “ler ativo e ler passivo; Sobre o conhecimento científico: que tipo de saber se busca afinal?, nos quais a autora chama o leitor para a necessidade de posicionar-se de forma crítica em relação ao que  está lendo. Pouco importa ler sobre a ética na empresa se o leitor não estiver atento aos problemas específicos de cada uma das  empresa. Há que se ter uma noção muito precisa do problema que se quer analisar. “Fazer pesquisa é ter um problema ou um  objetivo claro em mente, ou ter problemas recorrentes cuja causa não se conhece e cujo entendimento não se consigue (sic...) organizar”(p. 34) Ao lado de conceitos bem discutidos com exemplos práticos, há ao longo do texto alguns deslizes na parte ortográfica, tal como este aqui colocado, falhas estas que se espera serem corrigidas nas próximas edições.
Os capítulos seguintes, chamados “6. Sobre as limitações do conhecimento científico; 7. Sobre as teorias; e 8. O conhecimento científico é instrumental por natureza” dão uma ligeira impressão de que a obra vai finalmente começar a tratar de problemas  epistemológicos propriamente ditos, de sua natureza e de seus fundamentos filosóficos. Claro que tudo isto vem à tona, juntandose Hayek, Marx e Guerreiro Ramos para dizer para o estudante, com vários exemplos de que tudo isto é muito importante. Para  demonstrar que “é a partir de teorias que se criam conceitos, enxerga-se como se relacionam-se (sic..) com outros aspectos da
realidade que estuda e descobrem-se realidades novas, alargando os sistemas de pensamento, ampliando a cultura e criando palavras” (p. 52).
A parte sobre teorias é particularmente ilustrativa de usos adequados e impróprios para muitas palavras e conceitos que aparecem em Administração. Há exemplos de como o conceito de cultura organizacional que não era usado até pouco tempo atrás passa a ser uma referência, o mesmo pode ser dito para qualidade e para certificação ISO. As empresas ou pessoas que usam apenas uma teoria começam a ver o mundo por um ângulo bem estreito. Aqueles que só possuem um martelo, vêem o mundo como um prego.

Discute ainda o dizer tão freqüente de que na prática a teoria é outra para indicar com propriedade que a teoria é apenas uma ferramenta para pensar um problema, e não exatamente uma solução para um problema. A partir desta questão, como em tantas  outras, começa a discutir casos a elas relacionadas. O de um engenheiro, por exemplo, que passa anos aprendendo Cálculo, Física  e Química, mas ao chegar à firma, recebe um computador e softwares que realizam todos os cálculos de que necessita. Foram os conhecimentos teóricos inúteis? A discussão faz ver laramente que não. São com estes exemplos triviais conhecidos, que Migueles vai conquistando o leitor e tornando amena a  eitura, em tópicos como conhecimento científico, racionalidade, diferenças entre métodos qualitativos e quantitativos, e interdisciplinaridade e multidisciplinaridade.

Questões tradicionais que a gente espera no início do livro – tais como que é metodologia da pesquisa e para que serve?; os tipos de pesquisa?; quais os erros na escolha do método e outros tipos de erro – são discutidas apenas na segunda parte, entrecortadas de exemplos e com ilustrações claras da importância de cada uma destas questões. A inversão foi particularmente feliz, porque o leitor termina de ler a obra com uma viva discussão sobre a utilidade e a importância do método, que está ali para ajudá-lo em seus trabalhos científicos.
Até assuntos como cuidados no desenho, na proposta e na confecção dos instrumentos de coleta de dados na parte
dedicada à etno-metodologias e cuidados na elaboração de questionários são devidamente tratados. Não resisto a colocar nesta resenha uma passagem do livro que lustra bem este tópico e o espírito da obra. Dizia Micheles que uma simples questão colocada no questionário pode alterar a relevância de um dado, ou dificultar a importância daquela informação para o respondente. Ilustrou este ponto com o seguinte exemplo.

A autora estava no cabeleireiro folheado uma revista feminina, quando se deparou com um questionário daqueles do tipo que revelam “como as mulheres escolhem os homens”. Não resistindo, resolveu fazê-lo.
Estava tudo indo muito bem, até que se deparou com uma pergunta sobre os atributos de um parte da anatomia masculina pouco comum como critério de seleção feminina: o traseiro. Achando pouco pertinente, uma rápida reflexão sobre o tema fez entender a razão da sua colocação no questionário. Naquele ano, estavam fazendo um sucesso enorme “ feiticeira” e a “tiazinha”, sucesso devido à forma como despertavam a imaginação masculina e por seus atributos físicos, o traseiro dentre estes, como preferência nacional. Era possível imaginar de cara o perfil de quem construiu o questionário: uma feminista, irritadíssima com tanta atenção dada a estas moças, tentado (sic..) provar para os homens que as mulheres utilizam para selecioná-los os mesmos critérios que eles empregam. Estavam vingadas! (p. 122).
São com citações e exemplos deste tipo que Carmen Migueles consegue cobrir com doçura muitos tópicos em pesquisa que outros autores convertem numa leitura árida e desestimulante para o leitor. Com certeza, uma obra recomendada para todos aqueles que têm antipatia ou preconceitos contra obras de metodologia científica. Podem conferir.

Francisco Correia de Oliveira
Unifor

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